segunda-feira, 19 de julho de 2010

Das Invernias

por Paulo Mendes

Chamas multicolores se levantam das achas acinzentadas do fogo de chão, fazendo da dança nervosa das labaredas o próprio mistério enregelado que envolve essa gente do Sul. Lá fora, no arvoredo, os troncos e galhos nus emoldurados pelo sereno parecem velar pela memória dos ancestrais. Então, o senhor Inverno se abanca aqui dentro deste galpão de códigos antigos, verbos milongueados pela cordeona do tempo. São as frias vozes do minuano que vêm se acomodar debaixo do poncho de baeta colorada. Sob as camadas de gelo que branqueiam os cabelos do campo, dormitam séculos de saudades longínquas, já esquecidas pelos homens que mateiam em círculos de instinto ao redor dos braseiros. São fisionomias tristes, destruídas, unidas pela recordação dos que também viveram encarangados e depois partiram num voo de pássaro perdido.

O velho Inverno chega sempre com suas bárbaras barbas brancas de geada. Para lembrar-nos de que o tempo não galopa, apenas troteia, não para nem pra beber água, este esconjurado! Então é chegada a hora dos longos e tenebrosos causos de aparições, de medonhas carrancas, de noites enluadas ao redor dos saladeiros, de duendes, salamancas e princesas mouras enfurnadas pelos cerros e canhadas. É a época em que a velha senhora caminha com chinelas leves e atiça com gravetos o fogão à lenha. A pequena chama encarnada ferventa um caldo num panelão de ferro e o cheiro se alastra pelas narinas famintas dos viventes acantonados.

O tino e o rumo dessa indiada nunca mudarão, seguindo sempre pelos dias curtos e noites intermináveis. Não há, senhor Inverno, quem assuste essa gente dos meridianos, mesmo que o teu vento galope louco e possesso em rajadas líquidas pelos beirais e os raios despejem punhaladas nas encostas e nos ranchos. Não, essa gente guapa não se amedronta, podes ter certeza. Ela estará sempre firme, sem receios, e nada a impedirá de seguir cuidando do campo, do gado, das ovelhas e dos cavalos. Este aqui é o lugar deles, homens forjados pela têmpera dos avoengos, dos que lutam e nunca desistem. Povo que tem os descampados no sangue...

Eles sempre souberam que o gelo vem, mas depois se arranca, levando embora seu poncho de tristezas frias. Depois, todos se levantarão dos cepos, lustrarão as botas com sebo de rim de ovelha, e tudo recomeça. Mais um ano se vai, outras campereadas virão, novos sonhos vão embalar os jovens gaúchos na primavera que chegará com as cores vibrantes e os alvoroços de setembro. E para trás ficarão as cinzas mortas dos fogões, dos braseiros esquecidos e a picumã das cumeeiras. Então, a gente do pampa terá um ano inteiro para se preparar, outra vez, para as novas invernias...

Regalo foto: Fernanda Costa (nandancosta.blogspot.com)
Regalo publicação: jornal Correio do Povo

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