por Paulo Mendes
A memória é tudo o que temos. Do que guardamos e trazemos atado nos tentos do passado podemos reconstruir o presente e inventar o futuro. Por isso, conto, porque o que trago é o meu pago, às vezes vago, às vezes largo, no turbilhão das lembranças errantes. Coisas do que vivi lá na Vila Rica, atrás do balcão do bolicho, recolhi pelos corredores de terra vermelha na culatra de tropa, nas noites de lua cheia em épicas caçadas de tatu, nas pescarias nos finais das tardes quentes de verão ou enquanto gineteava tições nas frias madrugadas de agosto. Deposito aqui, meus senhores, nesta tarca de desgarrados recuerdos, essas impressões campeiras. Porque isso formou em mim o gaúcho que carrego na alma.
Conto, por exemplo, a história do touro colorado, de aspas afiadas, um maligno que nunca respeitou mangueira, rebentador de laços e de argolas e fazedor de defuntos. Se passou lá na Estância do Coqueiro, de uma família antiga e pioneira na região, uns Mascarenhas, que começaram a criar a raça Charolesa, abandonando os animais reiúnos. Esses acabaram por ficar no fundão dos campos. Pois foi por lá que o tal touro colorado começou a aprontar das suas. Primeiro matou um capataz, que caiu do cavalo num pelado de rodeio. E, depois, meus amigos, cometeu esse triste crime que lhes conto agora.
Doralice, mulher do José Campeiro, grávida de sete meses, começou a sentir umas dores e saiu a procurar uma parteira. No atropelo, quis atorar caminho e decidiu junto com o Augusto, ainda gurizote, atravessar uma invernada da estância. Então topou-se com o touro, que escarceava numa coxilha. O guri tentou ajudar a mãe, mas o touro atropelou e a varou com uma aspada. Augusto conseguiu escapar, se jogando numa voçoroca. Depois, fugiu e foi contar pro pai que estava chegando de um serviço. O Zé mesmo me fez o relato:
- Afiei bem meu trêis lista e me toquei pra fazenda. O seo Cypriano tava mateando quando le disse: Vim acertá uma conta com esse toro vermeio. Quando o bicho me viu, ficô me oiando, sabendo que a coza ia sê deferente. Matei devagarito, pra mode dele se senti que nem eu, que tava carneado por dento, o senhor faiz compreensão?
Fui ao enterro da Doralice e do seu filhinho que nem chegou a nascer. Depois de tudo acabado, coube a mim a tarefa de acompanhar o viúvo e o gurizote. Era dia esplêndido, ensolarado, com cheiro de pitangas. Perto do rancho deles as garças passavam num voo branco e os maçanicos conversavam miúdo no banhado. Mas o Zé Campeiro não via nada. Lembro dele, montado no gateado, fita preta no braço, taciturno, carregando na garupa o couro encarnado do touro sem coração...
Regalo: jornal Correio do Povo
A memória é tudo o que temos. Do que guardamos e trazemos atado nos tentos do passado podemos reconstruir o presente e inventar o futuro. Por isso, conto, porque o que trago é o meu pago, às vezes vago, às vezes largo, no turbilhão das lembranças errantes. Coisas do que vivi lá na Vila Rica, atrás do balcão do bolicho, recolhi pelos corredores de terra vermelha na culatra de tropa, nas noites de lua cheia em épicas caçadas de tatu, nas pescarias nos finais das tardes quentes de verão ou enquanto gineteava tições nas frias madrugadas de agosto. Deposito aqui, meus senhores, nesta tarca de desgarrados recuerdos, essas impressões campeiras. Porque isso formou em mim o gaúcho que carrego na alma.
Conto, por exemplo, a história do touro colorado, de aspas afiadas, um maligno que nunca respeitou mangueira, rebentador de laços e de argolas e fazedor de defuntos. Se passou lá na Estância do Coqueiro, de uma família antiga e pioneira na região, uns Mascarenhas, que começaram a criar a raça Charolesa, abandonando os animais reiúnos. Esses acabaram por ficar no fundão dos campos. Pois foi por lá que o tal touro colorado começou a aprontar das suas. Primeiro matou um capataz, que caiu do cavalo num pelado de rodeio. E, depois, meus amigos, cometeu esse triste crime que lhes conto agora.
Doralice, mulher do José Campeiro, grávida de sete meses, começou a sentir umas dores e saiu a procurar uma parteira. No atropelo, quis atorar caminho e decidiu junto com o Augusto, ainda gurizote, atravessar uma invernada da estância. Então topou-se com o touro, que escarceava numa coxilha. O guri tentou ajudar a mãe, mas o touro atropelou e a varou com uma aspada. Augusto conseguiu escapar, se jogando numa voçoroca. Depois, fugiu e foi contar pro pai que estava chegando de um serviço. O Zé mesmo me fez o relato:
- Afiei bem meu trêis lista e me toquei pra fazenda. O seo Cypriano tava mateando quando le disse: Vim acertá uma conta com esse toro vermeio. Quando o bicho me viu, ficô me oiando, sabendo que a coza ia sê deferente. Matei devagarito, pra mode dele se senti que nem eu, que tava carneado por dento, o senhor faiz compreensão?
Fui ao enterro da Doralice e do seu filhinho que nem chegou a nascer. Depois de tudo acabado, coube a mim a tarefa de acompanhar o viúvo e o gurizote. Era dia esplêndido, ensolarado, com cheiro de pitangas. Perto do rancho deles as garças passavam num voo branco e os maçanicos conversavam miúdo no banhado. Mas o Zé Campeiro não via nada. Lembro dele, montado no gateado, fita preta no braço, taciturno, carregando na garupa o couro encarnado do touro sem coração...
Regalo: jornal Correio do Povo
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