terça-feira, 1 de maio de 2012

Deficiência coletiva



por Daniele Freitas

Não era nem onze horas quando o ônibus apontou no final da rua, logo após a curva. Em mais uma manhã tediosa entre resumos e respostas quilométricas no verso da prova – que, cá entre nós, de nada adiantariam-, eu só queria que o dia terminasse bem, sem aquele gosto amargo de sentimento amarrotado de saudade.

Escolhi um banco aleatoriamente, mas sem abdicar da preferência pelo assento da janela. Não me exija explicações a respeito disso. Talvez, a gente precise encontrar nos outros algo que nos inspire, que faça o sol parecer menos quadrado ou que ajude a digerir as diversas verdades que são engolidas a seco diariamente, apenas por bom senso. Da janela do ônibus, milhares de vidas passam despercebidas: algumas cabisbaixas, outras lutando contra o tempo, umas que ainda não fazem ideia para onde estão indo. Nesse aglomerado de clichêzinhos bípedes, sempre existe algo que, de certa forma, chama a nossa atenção, seja positiva ou negativamente.

Eu, honestamente, não esperava daquele trajeto mais do que as notas musicais me sussurravam através dos fones de ouvido. Às vezes, nós simplesmente cansamos de esperar por mudanças, surpresas e imprevisibilidades, da mesma forma que a paciência para uma espera tão frustrante se esvai a cada nova decepção. O caminho é sempre o mesmo, as árvores são as mesmas e, frequentemente, as pessoas também. Em momentos aparentemente vazios como esses é que nos damos conta que o palco é sempre o mesmo, o que muda é apenas o roteiro.

Enquanto escorava a minha cabeça no vidro da janela, eu não imaginava que estava a alguns segundos de uma das cenas que mais me envergonhariam. Não me refiro à vergonha alheia, como bem tenho sentido há alguns meses, mas  à vergonha de mim e da maneira egoísta com que tenho agido ultimamente.

Em certo ponto da cidade, um homem varria a calçada. Segurem as pedras: eu não enrolei até aqui para explicitar um acontecimento tremendamente corriqueiro e banal. Admito que isso em nada teria me comovido, não fosse o homem um deficiente físico. Aquele sujeito de roupas simples apoiava em uma muleta a perna que tinha pela metade – ou talvez nem isso – e, assim que adquiria o equilíbrio necessário, varria um trecho da calçada. E assim ia, sucessivamente.

Queria eu dispor do tempo necessário para desembarcar do ônibus e parabenizar aquele homem. Em pouco tempo e sem dizer uma palavra sequer, ele me deu uma lição de vida. E eu nem pude informá-lo disso. Esse episódio me remeteu a uma história que a minha mãe havia me contado alguns anos atrás: ela caminhava para o trabalho quando viu um homem no segundo andar de um edifício lavando os vidros com apenas uma mão. São essas situações que me deixam ainda mais irritada com aqueles que têm tudo e vivem reclamando da vida e inventando desculpas para não fazer o que é preciso.

Nós perdemos  – e me incluo nesse “nós” – muito tempo reclamando de coisas bobas: o carro que estragou, o cabelo que está ruim, o dinheiro que não sobrou no fim de mês. Investimos nossos minutos em lamentações em vez de agirmos para mudar, ou ao menos tentar mudar, aquilo que não nos agrada. Isso me faz concluir que somos todos mal agradecidos por aquilo que temos: saúde, inteligência, beleza, sucesso ou seja lá o que for.

Além disso, me arrisco a mais uma conclusão: vivemos em uma sociedade deficiente. Eu, você, a vizinha e o cachorro vira-lata da rua. Talvez, não nos faltem pernas ou braços, mas nossa verdadeira deficiência está no caráter: algo que prótese alguma é capaz de substituir.

Regalo: portaletra.wordpress.com
*Crônica publicada no site de Zero Hora, em 22/03/2012

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