por Paulo Mendes
O Tostado tinha um pelo lisinho, brilhante, sedoso, acho que de tanta alfafa e milho que eu lhe dava. Sempre me olhava com aqueles enormes olhos pretos, às vezes parecia rir. Uma vez, só uma, depois de um dia inteiro puxando a carroça, cansado, me pareceu que estivesse chorando, o coitado. Eu me abracei ao seu pescoço, beijei-o na cabeça, mas de nada adiantou. Ele me olhou de uma forma tão triste que parecia escorrerem lágrimas das suas grandes vistas cansadas. Então também chorei agarrado à tala suada daquele pescoço tão amigo. Disse para meu pai que o Tostado não podia ser tão exigido. "É, cavalo veio ao mundo pra trabalhar", ele me respondeu.
Pra mim, o pai estava errado. O Tostado não era bicho, era gente como eu e ele. Eu sabia que tinha sentimentos, havia alma debaixo daquele couro. Na época, era meu único amigo e conversávamos por longas horas. Ele sabia tudo da minha vida e eu da dele. Nos entendíamos muito bem. Eu o pegava no potreiro em qualquer lugar, era mansinho, ficava pastando tranquilo. Quando eu chegava, com a corda na mão, levantava a cabeça e sorria pra mim. Eu perguntava: "Vamos trabalhar Tostado?". Por birra, chacoalhava a cabeça dizendo não. Que gaiato! Nos finais de semana, depois de fazer os temas de casa, eu pegava pelego e freio e saía devagar, até o grande cipreste, onde ele gostava de ficar à sombra. Primeiro enchia-o de carinhos, passava a mão pelo lombo, pelas crinas, fazia cócegas em sua barriga. Ele adorava. Depois, seguíamos ao passo até o mato das pitangas, por uma pequena e plana trilha no meio do campo verdejante. Eu me deitava em seu lombo e me deixava levar, sentindo o sol queimando na cara, o balanço do tranco... A vida era assim, nós dois na pradaria, a passarada cantando, o cheiro doce das pequenas flores machucadas pelos cascos...
Depois, lá na sanga, que corria cristalina por entre as pedras, o Tostado matava a sede. Eu também bebia. Depois me deitava de costas na grama, ouvindo o barulho da cascatinha e olhando para o céu missioneiro, azul, límpido, com as pequenas nuvens compondo desenhos. "Olha, Tostado, aquela parece uma ovelha, lá longe, a outra parece um elefante. Tu nunca viste um elefante, Tostado, não entende. Mas eu já vi num livro da escola..." Mais tarde voltávamos pra casa, felizes, como dois amigos.
Ah, Tostado, por que precisamos nos separar? Quando soube que estavas doente, corri ligeiro de volta pra casa, mas já era tarde. Estavas lá, estendido, ao lado do arroio, inchado, com os olhos abertos, a mirar a campina que amava... Será que morreste de saudade? Espere-me, meu cavalo, talvez um dia possamos nos encontrar de novo. E se essa ventura nos for concedida, vamos galopar de novo, juntos, pela eternidade...
Regalo foto: Roberto Santos
Regalo publicação: jornal Correio do Povo
O Tostado tinha um pelo lisinho, brilhante, sedoso, acho que de tanta alfafa e milho que eu lhe dava. Sempre me olhava com aqueles enormes olhos pretos, às vezes parecia rir. Uma vez, só uma, depois de um dia inteiro puxando a carroça, cansado, me pareceu que estivesse chorando, o coitado. Eu me abracei ao seu pescoço, beijei-o na cabeça, mas de nada adiantou. Ele me olhou de uma forma tão triste que parecia escorrerem lágrimas das suas grandes vistas cansadas. Então também chorei agarrado à tala suada daquele pescoço tão amigo. Disse para meu pai que o Tostado não podia ser tão exigido. "É, cavalo veio ao mundo pra trabalhar", ele me respondeu.
Pra mim, o pai estava errado. O Tostado não era bicho, era gente como eu e ele. Eu sabia que tinha sentimentos, havia alma debaixo daquele couro. Na época, era meu único amigo e conversávamos por longas horas. Ele sabia tudo da minha vida e eu da dele. Nos entendíamos muito bem. Eu o pegava no potreiro em qualquer lugar, era mansinho, ficava pastando tranquilo. Quando eu chegava, com a corda na mão, levantava a cabeça e sorria pra mim. Eu perguntava: "Vamos trabalhar Tostado?". Por birra, chacoalhava a cabeça dizendo não. Que gaiato! Nos finais de semana, depois de fazer os temas de casa, eu pegava pelego e freio e saía devagar, até o grande cipreste, onde ele gostava de ficar à sombra. Primeiro enchia-o de carinhos, passava a mão pelo lombo, pelas crinas, fazia cócegas em sua barriga. Ele adorava. Depois, seguíamos ao passo até o mato das pitangas, por uma pequena e plana trilha no meio do campo verdejante. Eu me deitava em seu lombo e me deixava levar, sentindo o sol queimando na cara, o balanço do tranco... A vida era assim, nós dois na pradaria, a passarada cantando, o cheiro doce das pequenas flores machucadas pelos cascos...
Depois, lá na sanga, que corria cristalina por entre as pedras, o Tostado matava a sede. Eu também bebia. Depois me deitava de costas na grama, ouvindo o barulho da cascatinha e olhando para o céu missioneiro, azul, límpido, com as pequenas nuvens compondo desenhos. "Olha, Tostado, aquela parece uma ovelha, lá longe, a outra parece um elefante. Tu nunca viste um elefante, Tostado, não entende. Mas eu já vi num livro da escola..." Mais tarde voltávamos pra casa, felizes, como dois amigos.
Ah, Tostado, por que precisamos nos separar? Quando soube que estavas doente, corri ligeiro de volta pra casa, mas já era tarde. Estavas lá, estendido, ao lado do arroio, inchado, com os olhos abertos, a mirar a campina que amava... Será que morreste de saudade? Espere-me, meu cavalo, talvez um dia possamos nos encontrar de novo. E se essa ventura nos for concedida, vamos galopar de novo, juntos, pela eternidade...
Regalo foto: Roberto Santos
Regalo publicação: jornal Correio do Povo
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