por Paulo Mendes
Seu Isidoro e o Tunico voltavam ao tranco, do fundo da estância, numa tarde abafada de um abril que se arrastava triste e seco. Naquele ano ainda não tinham visto uma boa chuva. Os animais penavam e morriam à míngua pelos campos desertos. O Arroio da Onça estava pura pedra, nem um pingo d''água. Nesse dia tinham sentido o cheiro nauseante das carniças estendidas no capinzal ressecado. Vista do alto, a corvada sinistra desenhava, cá embaixo, perfis de morte. Seu Isidoro, o capataz, era um mulato calejado, beirava os 60 anos, montava um mouro suado cuja garupa mais parecia uma anca de vaca. Trazia os olhos marejados, um lamento particular pela bicharada magra. Dom Amado havia dito no domingo que, se a estiagem durasse, não sabia o que iria ser de todos. Tunico, mais jovem, nem assobiava como de costume. Botara a perna com a bombacha arremangada por sobre os bastos e afrouxara as rédeas da bragada. Vinha com o chapéu na mão, abanando a cara indiática e as melenas compridas. Estava de pouca charla, pois um terneirinho recém-parido morreu desnutrido na invernada do meio.
Ao cruzarem a porteira grande antes das casas, viram pro lado do poente, uma barra escura que se ergueu no horizonte. Olharam-se e pressentiram que a seca, enfim, estava indo embora. O capataz puxou a imagem da santa do bolso da guaiaca, ao lado do relógio Tissot, beijou-a três vezes e fez o sinal da cruz. Tunico tentava escutar algo, mas nada... nem as cigarras. Um silêncio de igreja tomou conta dos campos assim, de repente, e um bando de pássaros passou aflito, riscando a copa do arvoredo. Lá longe, o céu lançava punhaladas avermelhadas na terra, e agora já dava pra se escutar o trovejar incessante das nuvens, numa convulsão de berros e de ventos.
Começavam a desencilhar quando o aguaceiro despencou. Era uma chuva forte, grossa, guasqueada pela ventania, que logo foi empoçando no terreiro castigado pela ressolana. Com a chegada da água, a noite parece que se fez doce no olhar das crianças, dos adultos e dos velhos. O cavalo baio cabos negros, Crioulo de lei do patrão, relinchou escaramuçando no Piquete do Umbu. Ah, quando o tempo desaba, o estio se acaba e o ciclo recomeça. Mas não são apenas as plantas que ficam sedentas, as almas dos viventes não são diferentes, sofrem e também se ressecam. A chuva lava as ânsias, o pampa ressurge e se refaz esverdeado. As flores guaxas renascem nas várzeas alagadas, os bichos se animam e os braços possantes se levantam para resgatar as searas perdidas. E tudo se acalma, remoça e se ajeita depois das tormentas...
Regalo foto: Jairo de Souza
Regalo publicação: jornal Correio do Povo
Seu Isidoro e o Tunico voltavam ao tranco, do fundo da estância, numa tarde abafada de um abril que se arrastava triste e seco. Naquele ano ainda não tinham visto uma boa chuva. Os animais penavam e morriam à míngua pelos campos desertos. O Arroio da Onça estava pura pedra, nem um pingo d''água. Nesse dia tinham sentido o cheiro nauseante das carniças estendidas no capinzal ressecado. Vista do alto, a corvada sinistra desenhava, cá embaixo, perfis de morte. Seu Isidoro, o capataz, era um mulato calejado, beirava os 60 anos, montava um mouro suado cuja garupa mais parecia uma anca de vaca. Trazia os olhos marejados, um lamento particular pela bicharada magra. Dom Amado havia dito no domingo que, se a estiagem durasse, não sabia o que iria ser de todos. Tunico, mais jovem, nem assobiava como de costume. Botara a perna com a bombacha arremangada por sobre os bastos e afrouxara as rédeas da bragada. Vinha com o chapéu na mão, abanando a cara indiática e as melenas compridas. Estava de pouca charla, pois um terneirinho recém-parido morreu desnutrido na invernada do meio.
Ao cruzarem a porteira grande antes das casas, viram pro lado do poente, uma barra escura que se ergueu no horizonte. Olharam-se e pressentiram que a seca, enfim, estava indo embora. O capataz puxou a imagem da santa do bolso da guaiaca, ao lado do relógio Tissot, beijou-a três vezes e fez o sinal da cruz. Tunico tentava escutar algo, mas nada... nem as cigarras. Um silêncio de igreja tomou conta dos campos assim, de repente, e um bando de pássaros passou aflito, riscando a copa do arvoredo. Lá longe, o céu lançava punhaladas avermelhadas na terra, e agora já dava pra se escutar o trovejar incessante das nuvens, numa convulsão de berros e de ventos.
Começavam a desencilhar quando o aguaceiro despencou. Era uma chuva forte, grossa, guasqueada pela ventania, que logo foi empoçando no terreiro castigado pela ressolana. Com a chegada da água, a noite parece que se fez doce no olhar das crianças, dos adultos e dos velhos. O cavalo baio cabos negros, Crioulo de lei do patrão, relinchou escaramuçando no Piquete do Umbu. Ah, quando o tempo desaba, o estio se acaba e o ciclo recomeça. Mas não são apenas as plantas que ficam sedentas, as almas dos viventes não são diferentes, sofrem e também se ressecam. A chuva lava as ânsias, o pampa ressurge e se refaz esverdeado. As flores guaxas renascem nas várzeas alagadas, os bichos se animam e os braços possantes se levantam para resgatar as searas perdidas. E tudo se acalma, remoça e se ajeita depois das tormentas...
Regalo foto: Jairo de Souza
Regalo publicação: jornal Correio do Povo
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