por Paulo Mendes
Quarenta janeiros atrás, dentro daquela casa simples, tendo ao fundo um poço com bocal acimentado e um pomar, vivia uma família inteira. Hoje, o rancho está vazio, assim como as almas de Celestino Estrada, o alambrador, e de sua esposa, dona Guidinha. O pátio tem uma cerca carcomida de taquara na frente, com um portãozinho de ferro. À esquerda, uma cerca de arame, sendo que o terceiro, com farpas, arrembentou-se faz tempo. Avistam-se duas tramas quebradas e o moirão, onde um casal de barreiros fez ninho, está frouxo. As duas laranjeiras não dão mais frutos. Do abacateiro, sobrou apenas o tronco seco, cortado por um raio.
Todas as tardes o casal mateia debaixo da única árvore que se mantém em bom estado. Trata-se de um tarumã, que já estava ali quando eles chegaram. A cuia passeia de mão em mão, lentamente, num ritual que se estende há anos. O porongo está gasto, liso, reluzente e combina com as duas mãos que o apertam diariamente. As mãos de dona Guidinha são mais brancas, mas também mostram grandes sulcos pelo dorso, por onde se escoaram as fantasias de menina criada solta, junto com os irmãos, na Serra da Boa Vista. Quando casou, era uma morena cheirosa, usava vestidos de chita, que lhe davam um ar silvestre. Foi numa tarde de abril, debaixo do arvoredo, quando fazia uma gemada, que avistou aquele gaúcho ainda jovem, montado num alazão, um facão atravessado na cintura, trazendo na garupa uma máquina de espichar arame, um arco de pua, um serrote, um socador, uma alavanca, as pás e um bornal de couro com pregos, martelo, grampos, chaves e puas. Para esse homem, em cujas mãos calejadas havia uma força tamanha, ela se entregou. Agora estava sentado à sua frente, quase cego, ruminando o passado.
A mão direita de Celestino treme quando ele a estende com a cuia para a mulher. Ali estão as veias abertas e cicatrizadas com o passar dos anos. Mãos que ergueram quadras e quadras de cercas pelas estâncias serranas, depois nas Missões, morando em barracões improvisados nos fundões de campo. O velho levanta e, antes de entrar na casa, enxerga a cadeirinha azul, quebrada, só duas pernas e o assento, no oitão, abandonada. Foi presente dado a Miguel, o primeiro filho, quando este fez 2 anos. Em cima, no encosto se lia: "Sou do Papai". Dos filhos, restaram só os brinquedos, agora sem serventia.
No quartinho dos fundos, ficaram dois cavalos de pau, encostados na parede. No do meio, sobrou uma boneca quebrada. No galpãozinho, ainda estão uma pá de corte e uma torquês. Com a mão lanhada e trêmula, Celestino tenta limpar o olho bom, agora marejado, lembrando do tempo em que tinha a ilusão de que aquilo tudo seria para sempre...
Regalo foto: Alexandre Mendez
Regalo publicação: jornal Correio do Povo
Quarenta janeiros atrás, dentro daquela casa simples, tendo ao fundo um poço com bocal acimentado e um pomar, vivia uma família inteira. Hoje, o rancho está vazio, assim como as almas de Celestino Estrada, o alambrador, e de sua esposa, dona Guidinha. O pátio tem uma cerca carcomida de taquara na frente, com um portãozinho de ferro. À esquerda, uma cerca de arame, sendo que o terceiro, com farpas, arrembentou-se faz tempo. Avistam-se duas tramas quebradas e o moirão, onde um casal de barreiros fez ninho, está frouxo. As duas laranjeiras não dão mais frutos. Do abacateiro, sobrou apenas o tronco seco, cortado por um raio.
Todas as tardes o casal mateia debaixo da única árvore que se mantém em bom estado. Trata-se de um tarumã, que já estava ali quando eles chegaram. A cuia passeia de mão em mão, lentamente, num ritual que se estende há anos. O porongo está gasto, liso, reluzente e combina com as duas mãos que o apertam diariamente. As mãos de dona Guidinha são mais brancas, mas também mostram grandes sulcos pelo dorso, por onde se escoaram as fantasias de menina criada solta, junto com os irmãos, na Serra da Boa Vista. Quando casou, era uma morena cheirosa, usava vestidos de chita, que lhe davam um ar silvestre. Foi numa tarde de abril, debaixo do arvoredo, quando fazia uma gemada, que avistou aquele gaúcho ainda jovem, montado num alazão, um facão atravessado na cintura, trazendo na garupa uma máquina de espichar arame, um arco de pua, um serrote, um socador, uma alavanca, as pás e um bornal de couro com pregos, martelo, grampos, chaves e puas. Para esse homem, em cujas mãos calejadas havia uma força tamanha, ela se entregou. Agora estava sentado à sua frente, quase cego, ruminando o passado.
A mão direita de Celestino treme quando ele a estende com a cuia para a mulher. Ali estão as veias abertas e cicatrizadas com o passar dos anos. Mãos que ergueram quadras e quadras de cercas pelas estâncias serranas, depois nas Missões, morando em barracões improvisados nos fundões de campo. O velho levanta e, antes de entrar na casa, enxerga a cadeirinha azul, quebrada, só duas pernas e o assento, no oitão, abandonada. Foi presente dado a Miguel, o primeiro filho, quando este fez 2 anos. Em cima, no encosto se lia: "Sou do Papai". Dos filhos, restaram só os brinquedos, agora sem serventia.
No quartinho dos fundos, ficaram dois cavalos de pau, encostados na parede. No do meio, sobrou uma boneca quebrada. No galpãozinho, ainda estão uma pá de corte e uma torquês. Com a mão lanhada e trêmula, Celestino tenta limpar o olho bom, agora marejado, lembrando do tempo em que tinha a ilusão de que aquilo tudo seria para sempre...
Regalo foto: Alexandre Mendez
Regalo publicação: jornal Correio do Povo
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