por Paulo Mendes
Até parece que foi ontem, mas já faz muito tempo. Vivia atrás de um balcão riscado à faca, pois em cima dele se cortava a linguiça defumada, a rapadura e até o fumo em rolo. Na época, não apareciam por lá esses fiscais sanitários... A limpeza ficava por minha conta mesmo, e eu era apenas um guri. De vez em quando, a lâmina atravessava o produto e lá se ia um naco da velha madeira de lei. Teve uma vez que o Corvinho lançou um pontaço na direção do Valter Madruga, que tirou o corpo fora e a carneadeira chocou-se direto na tábua. Escapou por sorte mesmo. Se pega, a coisa seria feia, mas Deus protege os borrachos, não protege?
Aquele balcão exalava um cheiro de aguardente, de erva-mate e, às vezes, de querosene. A tábua grossa e enegrecida do tampo era bem larga, de metro e meio, mas as bordas estavam carunchadas. Na ponta esquerda ficava a balança de ferro, de um lado o prato dos pesos, que iam desde 50 gramas até 2 quilos. Do outro, a concha amarelada onde se colocava os mantimentos. Gostava de ver os ponteiros, dois bicos de pato, se encontrando, se namorando, pra baixo e pra cima. Quando os patos se beijavam, era sinal de que o peso estava certo. Quando não tinha ninguém na venda, ficava balançando a balança, só pros bicos se namorarem por longo tempo, até parar, na horizontal, como era a minha vida.
E os personagens que passaram pelo bolicho? O seu Honório, o taipeiro, era um deles. Chacreiro pros lados do Cerrito, todos os domingos encilhava o cavalo a capricho e se pilchava para tocar gaita de boca ao vivo na rádio. Na volta, chegava pachola, com um tirador enfeitado, cheio de chaveirinhos, badulaques, fazia um barulhão. O pessoal pedia pra ele tomar umas Pepsi-Cola no bico, e assim ele fazia, por pirraça. Tomava uma meia dúzia sem parar, era um fenômeno. Lembro do Lampião, do Surdinho e do Zé Bolacha, que uma vez, encharcado de vinho, chegou a dançar ao som da "Voz do Brasil". No bolicho, presenciei as dores e as tristezas profundas dos desesperados, mas também muitos causos que me fizeram rir de doer a barriga. Outros surreais, como os do seu Honório, que fazia taipas em lavouras de arroz à noite, sob o luar. Numa delas, topou-se com um jacaré, prendeu o bicho e levou pra casa. O povo da Vila Rica fez procissão pra ver o réptil que ficou vários dias atado por uma pata.
Aquele lugar tinha vida nas prateleiras. "Todos nós somos borrachos, a canha que é diferente." Tem gente que vive embriagada pela vaidade, outros bêbados de amor. Ah, o velho bolicho. A saudade é uma macega doce onde nos abrigamos do vento xucro das recordações.
Regalo foto: Roberto Vinícius
Regalo publicação: jornal Correio do Povo
Até parece que foi ontem, mas já faz muito tempo. Vivia atrás de um balcão riscado à faca, pois em cima dele se cortava a linguiça defumada, a rapadura e até o fumo em rolo. Na época, não apareciam por lá esses fiscais sanitários... A limpeza ficava por minha conta mesmo, e eu era apenas um guri. De vez em quando, a lâmina atravessava o produto e lá se ia um naco da velha madeira de lei. Teve uma vez que o Corvinho lançou um pontaço na direção do Valter Madruga, que tirou o corpo fora e a carneadeira chocou-se direto na tábua. Escapou por sorte mesmo. Se pega, a coisa seria feia, mas Deus protege os borrachos, não protege?
Aquele balcão exalava um cheiro de aguardente, de erva-mate e, às vezes, de querosene. A tábua grossa e enegrecida do tampo era bem larga, de metro e meio, mas as bordas estavam carunchadas. Na ponta esquerda ficava a balança de ferro, de um lado o prato dos pesos, que iam desde 50 gramas até 2 quilos. Do outro, a concha amarelada onde se colocava os mantimentos. Gostava de ver os ponteiros, dois bicos de pato, se encontrando, se namorando, pra baixo e pra cima. Quando os patos se beijavam, era sinal de que o peso estava certo. Quando não tinha ninguém na venda, ficava balançando a balança, só pros bicos se namorarem por longo tempo, até parar, na horizontal, como era a minha vida.
E os personagens que passaram pelo bolicho? O seu Honório, o taipeiro, era um deles. Chacreiro pros lados do Cerrito, todos os domingos encilhava o cavalo a capricho e se pilchava para tocar gaita de boca ao vivo na rádio. Na volta, chegava pachola, com um tirador enfeitado, cheio de chaveirinhos, badulaques, fazia um barulhão. O pessoal pedia pra ele tomar umas Pepsi-Cola no bico, e assim ele fazia, por pirraça. Tomava uma meia dúzia sem parar, era um fenômeno. Lembro do Lampião, do Surdinho e do Zé Bolacha, que uma vez, encharcado de vinho, chegou a dançar ao som da "Voz do Brasil". No bolicho, presenciei as dores e as tristezas profundas dos desesperados, mas também muitos causos que me fizeram rir de doer a barriga. Outros surreais, como os do seu Honório, que fazia taipas em lavouras de arroz à noite, sob o luar. Numa delas, topou-se com um jacaré, prendeu o bicho e levou pra casa. O povo da Vila Rica fez procissão pra ver o réptil que ficou vários dias atado por uma pata.
Aquele lugar tinha vida nas prateleiras. "Todos nós somos borrachos, a canha que é diferente." Tem gente que vive embriagada pela vaidade, outros bêbados de amor. Ah, o velho bolicho. A saudade é uma macega doce onde nos abrigamos do vento xucro das recordações.
Regalo foto: Roberto Vinícius
Regalo publicação: jornal Correio do Povo
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