por Paulo Mendes
Lá fora, o vento balançava o taquaral e gania como uma matilha de cuscos loucos pelas ruas desamparadas de terra vermelha. Às vezes entrava pelas frestas da basculante, trazendo arrepios na garupa. Cá dentro, a capela cheirava a mofo e a sebo, e o silêncio só era quebrado pelos soluços da minha mãe, ao pé do caixão. Um cristo nos olhava triste pregado na cruz. As velas grandes e amareladas desenhavam na parede branca uns vultos que copiavam os perfis do morto. A madrugada estava tão gelada que até a água do mate tiritava de frio. Pelas cinco horas, um galo cantou pros lado do Durasnal e o baio do finado relinchou como que se despedindo. Quando clareava o dia, nos preparamos para enterrar tio Chico, o tropeiro, meu padrinho. Levantei-me com as pernas trêmulas em direção à porta, desesperado, como um cego ao encontro da luz.
Nesse instante lembrei da primeira vez que o vi. Era um domingo ensolarado com cheiro de japecangas no ar. Montava um tordilho vinagre, aperos prateados, chapéu tapeado na testa, barbicacho de couro trançado e chilenas reluzentes. Ria mostrando uns dentes alvos dentro de uma boca que nunca comia doce. "Só como fruta no pé", dizia pra gurizada. Naquela manhã de setembro, a capela estava abarrotada de gente. Morava na Fronteira na época em que nasci, por isso tive que esperar cinco anos para me batizar. Apesar disso, me afeiçoei a ele à primeira vista. O padre pediu pra ele deixar a adaga nos arreios. "Na casa de Deus não se usa armas."
Com o passar dos anos foi me ensinando tudo o que sabia. De volta das tropeadas, sempre passava em nosso bolicho. "Como vão as aulas?". Ficava feliz ao saber que eu gostava dos estudos. "A vida antiga tá acabando, agora um homem precisa de colégio." Eu estudava na cidade e ajudava na bodega, na lavoura e no campo, junto com meu irmão. Quando meu pai morreu, o padrinho veio morar conosco. Trouxe seus cavalos, os avios do mate, o laço, uma panela de ferro, uma trempe, o poncho e se instalou no galpãozinho ao lado das taquareiras. Um fato, porém, mudou em parte sua vida. Teve um caso rápido com uma moça que logo em seguida casou grávida com outro homem. O novo casal decidiu não contar nada para a menina. Às vezes, ele ia a cavalo até a escola e ficava longe vendo a guriazinha brincar. Voltava com os olhos marejados e ficava vários dias calado, remoendo sua tragédia pessoal.
Agora findava o homem, ficava a pequena história. Só lhes conto para que saibam quem foi, pois sua morte não foi comentada. Ele só era importante ali entre nós. Baixaram o caixão. Lá se ia o corpo. Ficava, contudo, sua alma gauchesca, para sempre, transmutada na minha.
Regalo foto: Paulo Nunes
Regalo publicação: jornal Correio do Povo
Lá fora, o vento balançava o taquaral e gania como uma matilha de cuscos loucos pelas ruas desamparadas de terra vermelha. Às vezes entrava pelas frestas da basculante, trazendo arrepios na garupa. Cá dentro, a capela cheirava a mofo e a sebo, e o silêncio só era quebrado pelos soluços da minha mãe, ao pé do caixão. Um cristo nos olhava triste pregado na cruz. As velas grandes e amareladas desenhavam na parede branca uns vultos que copiavam os perfis do morto. A madrugada estava tão gelada que até a água do mate tiritava de frio. Pelas cinco horas, um galo cantou pros lado do Durasnal e o baio do finado relinchou como que se despedindo. Quando clareava o dia, nos preparamos para enterrar tio Chico, o tropeiro, meu padrinho. Levantei-me com as pernas trêmulas em direção à porta, desesperado, como um cego ao encontro da luz.
Nesse instante lembrei da primeira vez que o vi. Era um domingo ensolarado com cheiro de japecangas no ar. Montava um tordilho vinagre, aperos prateados, chapéu tapeado na testa, barbicacho de couro trançado e chilenas reluzentes. Ria mostrando uns dentes alvos dentro de uma boca que nunca comia doce. "Só como fruta no pé", dizia pra gurizada. Naquela manhã de setembro, a capela estava abarrotada de gente. Morava na Fronteira na época em que nasci, por isso tive que esperar cinco anos para me batizar. Apesar disso, me afeiçoei a ele à primeira vista. O padre pediu pra ele deixar a adaga nos arreios. "Na casa de Deus não se usa armas."
Com o passar dos anos foi me ensinando tudo o que sabia. De volta das tropeadas, sempre passava em nosso bolicho. "Como vão as aulas?". Ficava feliz ao saber que eu gostava dos estudos. "A vida antiga tá acabando, agora um homem precisa de colégio." Eu estudava na cidade e ajudava na bodega, na lavoura e no campo, junto com meu irmão. Quando meu pai morreu, o padrinho veio morar conosco. Trouxe seus cavalos, os avios do mate, o laço, uma panela de ferro, uma trempe, o poncho e se instalou no galpãozinho ao lado das taquareiras. Um fato, porém, mudou em parte sua vida. Teve um caso rápido com uma moça que logo em seguida casou grávida com outro homem. O novo casal decidiu não contar nada para a menina. Às vezes, ele ia a cavalo até a escola e ficava longe vendo a guriazinha brincar. Voltava com os olhos marejados e ficava vários dias calado, remoendo sua tragédia pessoal.
Agora findava o homem, ficava a pequena história. Só lhes conto para que saibam quem foi, pois sua morte não foi comentada. Ele só era importante ali entre nós. Baixaram o caixão. Lá se ia o corpo. Ficava, contudo, sua alma gauchesca, para sempre, transmutada na minha.
Regalo foto: Paulo Nunes
Regalo publicação: jornal Correio do Povo
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