por Paulo Mendes
Se o tempo do Sul usasse roupas, certamente andaria por aí com um longo sobretudo de lã, cheio de bolsos para guardar as silenciosas saudades. Por isso, toda vez que um vento maroto vem se esgueirar por entre as frinchas das casas, assobiando frias milongas, lembro das manhãs de inverno em que ia para a escolinha da vila de São João do Barro Preto. Ajudava a mãe a tirar o leite das vacas, ainda escuro, tomava um apojo na mangueira, vestia a velha calça azul-marinho, camisa branca, um surrado blusão de lã com gola V, uma japona, pegava a pasta pesada, cheia de bolitas, e montava no Tostado. A mãe, fazendo o mate, perguntava: "Não esqueceu a merenda? Não vai levar o pala?". Eu já estava ao trote, com uns carpins enrolados nas mãos, louco pra chegar cedo e brincar com os colegas. Pelas voltas da estrada, ia vendo a geada branquinha tingindo os campos, enquanto da boca do cavalo subia um bafo quente. Nos açudes, o gelo deixava uma lâmina de vidro que, antes de derreter com o sol da manhã, ainda refletia meu rosto irrequieto de guri campeiro. Depois da passagem dos trilhos, enxergava a gurizada meio encarangada, esperando os parceiros, formando os times.
O Tostado ficava num campinho ao lado, pastando solto, às vezes com o pelego sobre o lombo. Ele me esperava, pacientemente, até por perto do meio-dia. No recreio comíamos a merenda ligeiro, pra que sobrasse mais tempo pra jogar bolita ou pro futebol. Meu lanche preferido era um biscoitão de farinha de trigo, geralmente já endurecido pelos dias, e um pedaço de linguiça seca. Levava tudo enrolado em um velho guardanapo de pano xadrez, que em cima tinhas os dizeres "Feliz Natal". A pasta de couro, carregava à meia espalda, para poder segurar as rédeas. Lembro do Pitico, meu melhor amigo, que não levava merenda, mas eu repartia com ele. Meio biscoito e meia linguiça pra cada um. O pai do Pitico, desempregado, vivia borracho pelos bolichos. A mãe cuidava sozinha dos filhos. Minha mãe sempre alertava: "Divide com ele, um dia tu também pode precisar que alguém te alcance um prato de comida". Anos mais tarde, nos encontramos. O Pitico virara tratorista, estava casado e, depois de me abraçar, disse para os filhos: "Este aqui era o meu anjo da guarda na escola, me dava merenda, lápis e cadernos".
A professora, dona Dilcéia, nos ensinou a ler e a escrever. Dizia que eu era um excelente leitor. Carregava uns livros de causos gaúchos e uns livros de poesia debaixo dos pelegos. Lia uns trechos engraçados para a piazada, que dava gargalhadas debaixo dos cinamomos. Esta escolinha foi pra mim, meus amigos, o início de tudo. Por isso, a sua lembrança eu guardo bem escondida, num cantinho secreto, bem lá no fundo do coração.
Regalo publicação: jornal Correio do Povo
Se o tempo do Sul usasse roupas, certamente andaria por aí com um longo sobretudo de lã, cheio de bolsos para guardar as silenciosas saudades. Por isso, toda vez que um vento maroto vem se esgueirar por entre as frinchas das casas, assobiando frias milongas, lembro das manhãs de inverno em que ia para a escolinha da vila de São João do Barro Preto. Ajudava a mãe a tirar o leite das vacas, ainda escuro, tomava um apojo na mangueira, vestia a velha calça azul-marinho, camisa branca, um surrado blusão de lã com gola V, uma japona, pegava a pasta pesada, cheia de bolitas, e montava no Tostado. A mãe, fazendo o mate, perguntava: "Não esqueceu a merenda? Não vai levar o pala?". Eu já estava ao trote, com uns carpins enrolados nas mãos, louco pra chegar cedo e brincar com os colegas. Pelas voltas da estrada, ia vendo a geada branquinha tingindo os campos, enquanto da boca do cavalo subia um bafo quente. Nos açudes, o gelo deixava uma lâmina de vidro que, antes de derreter com o sol da manhã, ainda refletia meu rosto irrequieto de guri campeiro. Depois da passagem dos trilhos, enxergava a gurizada meio encarangada, esperando os parceiros, formando os times.
O Tostado ficava num campinho ao lado, pastando solto, às vezes com o pelego sobre o lombo. Ele me esperava, pacientemente, até por perto do meio-dia. No recreio comíamos a merenda ligeiro, pra que sobrasse mais tempo pra jogar bolita ou pro futebol. Meu lanche preferido era um biscoitão de farinha de trigo, geralmente já endurecido pelos dias, e um pedaço de linguiça seca. Levava tudo enrolado em um velho guardanapo de pano xadrez, que em cima tinhas os dizeres "Feliz Natal". A pasta de couro, carregava à meia espalda, para poder segurar as rédeas. Lembro do Pitico, meu melhor amigo, que não levava merenda, mas eu repartia com ele. Meio biscoito e meia linguiça pra cada um. O pai do Pitico, desempregado, vivia borracho pelos bolichos. A mãe cuidava sozinha dos filhos. Minha mãe sempre alertava: "Divide com ele, um dia tu também pode precisar que alguém te alcance um prato de comida". Anos mais tarde, nos encontramos. O Pitico virara tratorista, estava casado e, depois de me abraçar, disse para os filhos: "Este aqui era o meu anjo da guarda na escola, me dava merenda, lápis e cadernos".
A professora, dona Dilcéia, nos ensinou a ler e a escrever. Dizia que eu era um excelente leitor. Carregava uns livros de causos gaúchos e uns livros de poesia debaixo dos pelegos. Lia uns trechos engraçados para a piazada, que dava gargalhadas debaixo dos cinamomos. Esta escolinha foi pra mim, meus amigos, o início de tudo. Por isso, a sua lembrança eu guardo bem escondida, num cantinho secreto, bem lá no fundo do coração.
Regalo publicação: jornal Correio do Povo
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Tchê, é um prazer receber seu comentário e/ou sua crítica, fique a vontade para soltar o verbo e muito obrigado por sua participação. Forte abraço.