por Paulo Mendes
Um homem pode ser muitas coisas, ou apenas uma canoa deslizando sobre o rio Uruguai. Um homem pode ser barco e outras coisas. Muitas vezes quis ser água, às vezes barco. Mas era gente, e sendo náufrago, só me restava beber a água do rio e rezar.
Foi assim:
Estava deitado no meu catre, como sempre, quando a segunda-feira amanheceu. Esperava, como sempre, meu pai, Santo Gutierrez, o chibeiro. O senhor sabe o que é um chibeiro? É como chamam, aqui na Fronteira, essa gente humilde que ganha a vida contrabandeando. Atravessando o rio com produtos pra vender do lado de cá. Ganhar dinheiro. O senhor não trabalha pra ganhar dinheiro? O senhor deve ter filhos, ou já teve, pra sustentar. Meu pai, o Santo, vivia pra me sustentar. Quando sobrava uns pilas, tomava uma canha. Era só. Quando nasci, mamãe morreu, eu vim atravessado ao mundo. Santo Gutierrez, meu pai, bem que tentou endireitar, cuidava de mim, eu que nunca pude caminhar, nem o ver, pois nasci cego e paralítico. Foi ele que me contou sobre a alva luz da alvorada e as belezas do poente. Também dizia que a coisa mais linda do mundo era uma noite estrelada. Eu não via, mas Santo as via por mim.
Por isso gelei naquele amanhecer em que ouvi o grito:
- Mataram o Santo, o Santo morreu...
Eram sete da manhã. Soube, então, que a partir dali Santo Guitierrez nunca mais me ajudaria com a cadeira de rodas, nem faria mais café, mais nada. Pelas dez, começaram a chegar. Primeiro, apareceu o comissário com as justificativas, mas sabia que ele estava satisfeito. O Santo dava muito trabalho pra Polícia do lado de cá e do lado de lá. Eu ouvia que o Santo era isso, era aquilo. Depois veio o Pedro Zoreia, amigo dele há muitos anos, desde a época em que chibeavam farinha. Deixou-me a faca cabo de prata e a gaita de boca que Santo gostava de tocar nas noites enluaradas. Pedro disse: "Os carabineros alumiaram com as lanternas e mandaram bala. Uma delas atravessou o coração do Santo". Ah, o coração do Santo era tão mole... Dona Guidinha, minha madrinha, surgiu à tarde. Trouxe bolachas e me levou no enterro. Pensava nele como sempre o imaginei e pelo que me contavam. Tinha olhos negros ariscos, melenas reluzentes e nunca chorava. Dizia pra eu ter coragem e não chorar. Eu retrucava que tinha coragem, mas chorava assim mesmo. Então ele ria, ria e me abraçava, ria e me beijava.
Pedi para a madrinha me levar até o rio. Só pra ouvir o barulho dos remos e sentir o cheiro da água barrenta e dos aguapés. Eram os cheiros do pai. Pelo vento, senti que anoitecia. Então puxei do bolso do jaleco a harmônica e toquei, pela primeira vez, a milonga que anos mais tarde chamei de "A noite que Santo Gutierrez deixou de ver as estrelas".
Regalo foto: Jairo de Souza
Regalo publicação: jornal Correio do Povo
Um homem pode ser muitas coisas, ou apenas uma canoa deslizando sobre o rio Uruguai. Um homem pode ser barco e outras coisas. Muitas vezes quis ser água, às vezes barco. Mas era gente, e sendo náufrago, só me restava beber a água do rio e rezar.
Foi assim:
Estava deitado no meu catre, como sempre, quando a segunda-feira amanheceu. Esperava, como sempre, meu pai, Santo Gutierrez, o chibeiro. O senhor sabe o que é um chibeiro? É como chamam, aqui na Fronteira, essa gente humilde que ganha a vida contrabandeando. Atravessando o rio com produtos pra vender do lado de cá. Ganhar dinheiro. O senhor não trabalha pra ganhar dinheiro? O senhor deve ter filhos, ou já teve, pra sustentar. Meu pai, o Santo, vivia pra me sustentar. Quando sobrava uns pilas, tomava uma canha. Era só. Quando nasci, mamãe morreu, eu vim atravessado ao mundo. Santo Gutierrez, meu pai, bem que tentou endireitar, cuidava de mim, eu que nunca pude caminhar, nem o ver, pois nasci cego e paralítico. Foi ele que me contou sobre a alva luz da alvorada e as belezas do poente. Também dizia que a coisa mais linda do mundo era uma noite estrelada. Eu não via, mas Santo as via por mim.
Por isso gelei naquele amanhecer em que ouvi o grito:
- Mataram o Santo, o Santo morreu...
Eram sete da manhã. Soube, então, que a partir dali Santo Guitierrez nunca mais me ajudaria com a cadeira de rodas, nem faria mais café, mais nada. Pelas dez, começaram a chegar. Primeiro, apareceu o comissário com as justificativas, mas sabia que ele estava satisfeito. O Santo dava muito trabalho pra Polícia do lado de cá e do lado de lá. Eu ouvia que o Santo era isso, era aquilo. Depois veio o Pedro Zoreia, amigo dele há muitos anos, desde a época em que chibeavam farinha. Deixou-me a faca cabo de prata e a gaita de boca que Santo gostava de tocar nas noites enluaradas. Pedro disse: "Os carabineros alumiaram com as lanternas e mandaram bala. Uma delas atravessou o coração do Santo". Ah, o coração do Santo era tão mole... Dona Guidinha, minha madrinha, surgiu à tarde. Trouxe bolachas e me levou no enterro. Pensava nele como sempre o imaginei e pelo que me contavam. Tinha olhos negros ariscos, melenas reluzentes e nunca chorava. Dizia pra eu ter coragem e não chorar. Eu retrucava que tinha coragem, mas chorava assim mesmo. Então ele ria, ria e me abraçava, ria e me beijava.
Pedi para a madrinha me levar até o rio. Só pra ouvir o barulho dos remos e sentir o cheiro da água barrenta e dos aguapés. Eram os cheiros do pai. Pelo vento, senti que anoitecia. Então puxei do bolso do jaleco a harmônica e toquei, pela primeira vez, a milonga que anos mais tarde chamei de "A noite que Santo Gutierrez deixou de ver as estrelas".
Regalo foto: Jairo de Souza
Regalo publicação: jornal Correio do Povo
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