quinta-feira, 24 de junho de 2010

CONTO: O céu não é tão longe

por Sergio Faraco

Ao prender a rédea no palanque, onde paravam já outros cavalos, notou Isidoro que, na cancha de osso ao lado do bolicho, os homens o olhavam, e tais olhares, embora insistentes, não eram provocativos, antes curiosos, surpresos. Gente conhecida, peões da vizinhança que folgavam, e Isidoro, que vinha de uma estância próxima, onde capatazeava, e ia para outra mais distante – as visitas domingueiras ao mano –, estranhou essa atenção. O zunzum sobre a menina cruzara já a porta do bolicho? Afrouxou sobrecincha e cincha, aliviando o ruano. Deu uma palmada na paleta do animal, pendurou o chapéu na cabeça do lombilho e arrodeou o palanque. Da cancha, ainda o olhavam, agora com disfarce.
Três homens ao balcão.
– Buenas.
Nenhum se voltou. Bebiam. Joaninha, saindo da cozinha, murmurou algo que ele não compreendeu e imaginou ser um cumprimento.
– Como passa o senhor seu pai ? indagou à moça.
– Assim-assim.
– Continua no hospital?
Pois continuava, e derrubou o copo ainda vazio de Isidoro.
– Ai, desculpe.
Ao servir, as mãos dela estremeciam.
Os homens, que no toco Isidoro esmiudara, eram três polacos um tanto despilchados: dois de alpargatas, camisas remangadas, o outro com a túnica de um longínquo sargento, puída, sem botões, e tênis tão acalcanhados que pareciam natos já como chinelos. Admirou-se de nunca tê-los visto e, pior, não receber a saudação que se costumava dar a quem chegava, perguntando-se pelo destino e o estado do cavalo.
Era gente da cidade.
E pela estampa, gente ruim.
Na ponta do balcão, olhos baixos, ele degustava sua branquinha, e num gesto mecânico levou a mão ao coldre, na guaiaca. O revólver ficara em casa, não o carregava aos domingos. Um gole e sentiu-se menos cismado, e logo bem-disposto ao ver os polacos pagarem a bebida e se retirarem. Um deles disse à moça:
– As melhoras de seu pai, dona.
Joaninha abriu a boca, mas não se ouviu nenhum som.
– Outra – pediu Isidoro.
Ao invés de servi-lo, ela correu à porta para espiar. Isidoro a observava e ouviu o rumor das patas quando os homens ganharam a estrada, a trote. Joaninha se acercou, ofegante.
– Fuja, fuja!
– Mas que é isso, moça?
– Estão armados e dêle a perguntar pelo senhor.
– Ah é? E o que a moça disse?
– Que o senhor passava de manhã, ia visitar o irmão na Alvorada. Só depois vi o revólver... Fuja, seu Isidoro!
– Não tenho do quê, vai ver que é negócio.
– Não há de ser! Não há de ser!
– Moça preocupada com o pai...
E passou-lhe a mão no rosto, um gesto quase delicado.
Joaninha tinha 32 anos e era solteira, também dentuça, feinha, mas um mimo de mulher, se conduta e bom gênio contassem no juízo masculino. O bolicheiro desejava casá-la com Isidoro, mas este, por mulherengo, negaceava, não era de seu feitio aferrolhar-se a uma mulher e o que lhe apetecia era manter dois ou três cambichos nos puteiros de Maçambará. No entanto, a uma única mulher devia o perigo que talvez estivesse a correr.
– Não se assuste - tornou -, será algum interesse nos meus boizinhos. Em todo caso, se a moça vai se anervosear é melhor que eu leve aquela parabelo do senhor seu pai. Não que precise.
A caminho da Fazenda Alvorada, Isidoro devotava seus pensamentos a uma outra estância, a do Umbu, e figurava a caçula de Dom Romualdo Castanha, senhorita Maria Luíza.

***

Ao recorrer, com a devida licença, os campos lindeiros do Umbu, à cata de uma rês extraviada, vira o petiço na margem do arroio, amarrado a uma sina-sina, e Maria Luíza seminua, reclinada no pasto sobre a toalha. Rapariga levada. Já uma vez o provocara com requebros e nhenhenhéns, quando estivera no Itaqui para tirar um documento e visitara o pai dela. Era da raça do fósforo, bastava um risco, maiormente agora que despachara o noivo amaricado. Ia passar ao largo, mas a tentação de vê-la de perto foi mais forte.
Maria Luíza sentou-se, abraçando as pernas. O seio, encobrira com a ponta da toalha.
– O senhor por aqui, seu Isidoro?
– Eu mesmo. Desde cedo estou campeando a mocha brasina que varou o alambrado. A menina não viu?
– E que visse... Não conheço pêlo de vaca.
– Brasina é cor de brasa, malhada de escuro.
– Posso ter visto... sem ver. Não quer apear?
– Grácias, aceito.
Ao desmontar, atando a rédea na mesma arvoreta, não dissimulou uma olhadela à calcinha da menina, onde abojava aquela sombra densa. Acocorou-se à meia distância.
– Então... como passa Dom Romualdo?
– Bem. E seu patrão?
– Bem.
– Está aí?
– Não, foi ontem pro Itaqui.
– Papai foi hoje. Se estivesse aqui, eu não poderia me bronzear. Fico assim como o senhor vê, quase sem roupa.
Ele aprovou com a cabeça, embora lhe fosse difícil entender por que ela precisava se tostar ao sol da meia-tarde.
– São essas coisas...
– Que coisas, seu Isidoro?
– Bueno, coisas da vida...
Ela riu, e os alvos dentes do riso a tornavam mais convidativa. Na sina-sina, o petiço priscou, mordido pelo ruano.
– Olhe só o seu cavalo, que malvado.
– É retouço. Quem não gosta de um retouço?
– O senhor gosta?
– Eu mais que todos.
– O senhor é tão engraçado...
E riu de novo. A toalha tinha caído e Isidoro viu o seio nu, apertado contra o joelho.
– E a senhora, se desculpa o atrevimento, uma lindona.
– Acha? – e mordeu o lábio, e estirou as pernas, e nos mimosos morretes os bicos negros e eriçados pareciam apontá-lo e culpá-lo por falta de saliva. – De rosto?
– De tudo – a garganta lhe secara – e mais um pouco.
– Mais um pouco?
– Um pouco muito – e ajuntou, num arranco: – Uma dona como a senhora leva um homem até o céu.
– O senhor também, seu Isidoro?
– Mais que todos.
Ela se aproximou, de gatinhas, e tocou no braço dele.
– O céu é muito longe. Não quer ir comigo até a tapera, que é mais perto?
– Com a senhora – pôde responder, num cochicho, aturdido pelos corcovos de seu sangue –, vou até onde mora o belzebu.
Antiga morada de um posteiro, a tapera era o refúgio de um cacunda guacho que, durante o dia, esmolava na vila do Bororé. As paredes de tábua estavam prestes a tombar. Não tinha telhado, e folhas de zinco na cercania atestavam a violência do vendaval que a destampara. Tivera quatro peças, agora três com a queda de um tabique, e por tudo coalhava a flexilha, despontando no buraco das janelas. Por tudo, não. A um canto, a casita dentro da casa: uma pequena cobertura de zinco e couro, à meia altura da parede, suspensa em cada extremidade por dois pares de tramas em xis enrabichadas no chão. Debaixo, um pelego sobre tábuas e ali a menina deitou, arreganhando as coxas, as narinas a fremir como as das éguas.
E era limpa, cheirosa, e era macia. E como sabia se acomodar, espremida pelo macho, como o entrelaçava, apresilhando-o com as pernas trigueiras, como o aceitava, secretando a vereda de seu faminto abismo. E Isidoro, estuando de desejo e emoções desconhecidas, começou a descobrir que, em sua vida empachada de mulheres, era a vez primeira que veramente entrava num corpo que ansiava por seu corpo, era a vez primeira que veramente cobria uma mulher e o resto era bagaço comprado a pouco pila.
A fortuna é perversa: se dá o pão, tira o miolo.
Quando o cacunda os viu e abalou feito o gato da água, Isidoro pressentiu que sua descoberta tinha preço. De fato, na mesma semana soube que Dom Romualdo sapecara a filha, e esta, sem demora, fora devolvida à casa da cidade, à mercê da língua do povo e fadada a morrer solteira.
E agora aqueles polacos.

***

Avançava o ruano a passo, vigiado pelo passaredo na galharia que se debruçava sobre a estrada. Vinha uma jardineira ao seu encontro, com ela uma musiquinha, e Isidoro disse consigo que o peão da Alvorada, que nos domingos demandava ao bolicho por mantimentos, jornais e cartas, estava atrasado. Costumava topar com a jardineira mais cedo.
Pararam.
– Buenas – disse o peão, desligando o radinho Spica, sintonizado na Rádio Itaqui.
– Buenas.
– Como passa o senhor?
– Bem. E tu?
– Bem.
Calaram-se, por momentos olharam ao longe para algo que certamente não viam.
– E meu mano? – recomeçou Isidoro. – Guareceu do pé?
– Pois guareceu. Já hoje andou montando.
– Não dói mais?
– Diz que dói, mas menos.
– Tem que ir no doutor.
– É o que eu digo.
– Mas é xucro.
– Demais.
Isidoro dobrou a perna, repousando-a no pescoço do ruano.
– E esse tempo? Vem água pra de noite?
– E vem que vem, a formiga anda que só ela.
– Eu vi.
– Formiga não mente.
Riram. Isidoro ofereceu a fumeira.
– Tá servido?
– Como não? Já fiz o meu hoje, mas... mais um, menos um...
Fizeram os cigarros e fumaram em silêncio, com longas e prazerosas tragadas.
– Me voy – disse Isidoro, recolhendo a perna. – A formiga é sincera, mas que a manhã tá bonita, tá.
– E movimentada.
– Não diga.
– Digo. No mato aqui pra trás, perto da cruza da sanga, vi três pilungos maneados.
– Três?
– Um, dois, três.
– Um gateado e dois rosilhos?
– Encilhados.
– De que lado?
– Pro senhor, às direitas.
– E os fulanos?
– Até parei pra olhar. Não se mostraram.
Por isso se atrasou, pensou Isidoro.
– Bueno, te aguardo na Alvorada com o mate andando.
– Com muito gosto – agradeceu o peão. E para o cavalo: – Te mexe, lasqueado!
A jardineira se afastou, erguendo difusa polvadeira, e Isidoro cutucou o ruano. Inquietava-se, mas não era homem de fazer volteios diante de um aperto. De que adiantava refugá-lo? Conseguindo hoje, amanhã não conseguia e então era o caso de apurá-lo, quando menos para não passar dias e semanas no puxa e afrouxa, com prejuízo do serviço. E mais: fazia oito anos que, no domingo, ia matear com o irmão, que retribuía no seguinte. Não ia atropelar o costume, entregando as fichas àqueles sebentos.
Meia-légua adiante a estrada serpejava coxilha arriba. Além, no fim do lançante, assanhava-se um fio d’água entre pedregulho que chamavam Sanga dos Antunes, e grassava o mato pelas bandas do caminho. Quem quer que lá estivesse à espreita avistaria um ginete no topo da coxilha, mas Isidoro, a passo, seguia rumo ao seu destino.
Seguia também o dia no campo, que se abria qual um mar: a garça-vaqueira no meio do gado, a inocência estrábica dos nhandus te mirando, e te mirando também, de um moirão, o perverso quiriquiri, e o grito das saracuras num banhado, e a vigilância ruidosa dos quero-queros, e o vôo remoto dos infaustos urubus, evocando a morte, e a doçura das rolinhas-picuí a namorar num garupá, evocação da vida. Uma súbita preá cortou a estrada, em busca de seu gravatazal.
À distância, podia afetar que o ginete cabisbaixo vinha adormecido ou borracho, mas seu olhar espiolhava o cenário: acabara de ver adiante os cavalos, onde lhe indicara o peão, e os fulanos, decerto, estariam à esquerda, supondo que haveriam de surpreendê-lo. Apeou e, com o ruano a cabresto, entrou no mato, não muito, o bastante para arredar a montaria do bochincho. Com rápidas passadas retornou à orla e se ocultou atrás de uma guajuvira. Enxergava o caminho de laço a laço e, por supuesto, quem tentasse atravessá-lo. Sabiam os polacos que ele apeara ali, mas o que não sabiam nem podiam saber, porque eram da cidade, é que ninguém se move despercebido num capão cerrado: aqui vai o intruso, diz o bulício das asas nas grimpas do arvoredo.
Ao pé da guajuvira, esperou.
Eles se aproximavam e acima de suas cabeças esvoaçavam ora a juriti-pupu, a caturrita, o bem-te-vi, ora o pardalzinho, o sabiá-laranjeira, o tororó, e Isidoro crispou-se quando a revoada alcançou as primeiras árvores esparsas. Encostou a pistola no tronco e não precisou esperar mais: lá se vinham, arrastando-se entre as guanxumas. Então ignoravam que a natureza os denunciara? Divisava uma perna e era nela que lhe dormia a mira, um susto e os botava a bom galope. Mas eles trocaram de lugar e então Isidoro, a dez braças se tanto, viu distintamente apenas dois polacos.
E o terceiro?
O terceiro, ele não veria jamais.
Sentiu o baque nas costas, que o grudou na guajuvira. Intentou voltar-se, outro tiro o atingiu na nuca e ele escorregou, abraçado ao tronco, até ajoelhar-se e logo despencar de bruços na folharada.
– Alguém lhe manda lembranças – disse o homem da túnica.
Tossia, deitava sangue da boca, do nariz, mas naquele veloz instante, antes que o nada lhe carcheasse todos os pensamentos e todos os dias por viver, pôde figurar mais uma vez a caçulinha dos Castanha. Na memória da pele ainda guardava o cheiro dela, um cheiro alado que o remontava da orla do mato para um peleguito entre flexilhas, onde o deus que mandava no desejo, andando de quatro como um bicho, trazia nas ancas, em balaios de ramaria, o sabor agridoce da pitanga e os suspiros e os gemidos da menina. Não era tão longe o céu. Que lhe cobrasse a vida chica! Ao menos não a perdia por doença, mordido de coral, em salseiro numa cancha de osso ou contra a faca de um maleva encachaçado, mas pro via de um dourado corpo de mulher e com o recuerdo daquela tarde na tapera.

Regalo: www.sergiofaraco.com.br

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Quem se gostou e quiser ler a resenha escrita por Jacob Klintowitz a respeito do conto, clique aqui.

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